O amor em pauta: entre a busca incessante e a coragem de se (re)conhecer.

Quem nunca se pegou pensando sobre o amor? Ele move montanhas, inspira canções, preenche páginas de livros e, claro, ocupa um espaço central em nossas vidas e nos consultórios. Falamos tanto em “encontrar o amor”, “ser amado”, “ter um relacionamento feliz”. Mas, já parou para pensar que, talvez, a questão crucial não seja apenas o que ou quem buscamos, mas como nós mesmos nos posicionamos nessa dança complexa que é amar?

A psicanálise, desde Freud, nos convida a olhar para o amor não como um sentimento mágico que simplesmente acontece, mas como uma construção profundamente ligada à nossa história, aos nossos desejos mais inconscientes e, sim, aos nossos padrões de repetição. E se, em vez de apenas demandar amor do outro, pudéssemos investigar a nossa própria capacidade de amar, de nos entregarmos e de construirmos laços mais autênticos? Este é um convite para mergulhar nesse universo, com a promessa de que entender nossas repetições pode ser o primeiro passo para reescrever nossas histórias afetivas.

A eterna demanda e a potência de amar: o que nos move?

Desde os primórdios da nossa existência, a relação com o outro (inicialmente, a mãe ou quem exerce essa função) é marcada por uma demanda fundamental: a demanda de amor. Buscamos reconhecimento, cuidado, um lugar no desejo do outro. Essa busca é inerente ao ser humano, como nos ensinou Freud ao falar das primeiras relações objetais, e Lacan, ao apontar que o amor é, muitas vezes, “dar o que não se tem” – uma tentativa de preencher uma falta que nos constitui.

No entanto, quando essa demanda se torna o único motor de nossas relações, podemos cair em um ciclo de frustração. Esperamos que o outro nos complete, que adivinhe nossos desejos, que supra todas as nossas carências. E, como sabemos, nenhum outro pode ocupar esse lugar de completude idealizada. A dificuldade em amar, ou a forma como amamos, muitas vezes está atrelada a essas primeiras experiências e às fantasias que construímos sobre o que é o amor e o que esperamos dele. Alguns se fecham, temendo a vulnerabilidade, outros se entregam de forma fusional, perdendo-se no outro. Entender essa dinâmica entre a demanda e a capacidade de amar é crucial.

O script se repete: por que caímos sempre nas mesmas ciladas amorosas?

“Parece que tenho um dedo podre para escolher parceiros!” ou “Não sei por que, mas todos os meus relacionamentos terminam da mesma forma!”. Quem nunca ouviu ou mesmo pronunciou frases como essas? A sensação de estar preso em um padrão de repetição amorosa é mais comum do que se imagina. E a psicanálise nos mostra que isso não é mero acaso ou “azar no amor”.

Freud, com o conceito de compulsão à repetição, já nos alertava para essa tendência humana de reencenar, inconscientemente, situações e relações do passado, especialmente aquelas que foram traumáticas ou não elaboradas. Não repetimos porque gostamos de sofrer, mas porque há algo ali, uma marca, uma fixação, uma forma de gozo (mesmo que paradoxalmente dolorosa) que insiste em se manifestar.

Esses padrões podem ser os mais variados: a busca incessante por parceiros que nos rejeitam (reeditando uma ferida narcísica antiga), o envolvimento em relações de dependência emocional (repetindo um padrão de cuidado ou desamparo infantil), a sabotagem de relacionamentos promissores quando a intimidade se aprofunda (talvez por medo da perda ou da fusão), ou a escolha de parceiros que se assemelham a figuras parentais. O roteiro é inconsciente, mas os resultados são dolorosamente concretos.

A análise: um ateliê para recriar o amor.

Se os padrões amorosos são forjados no inconsciente, é lá que precisamos buscar as chaves para compreendê-los e, quem sabe, transformá-los. E é aqui que a psicanálise se apresenta como um caminho potente. O setting analítico, com sua escuta atenta e singular, funciona como uma espécie de ateliê do amor.

Um dos fenômenos centrais da análise é a transferência. Inevitavelmente, o paciente passa a dirigir ao analista sentimentos, expectativas e padrões relacionais que são reedições de suas experiências afetivas passadas. O analista se torna, temporariamente, o depositário dessas projeções. E é justamente aí que reside uma oportunidade única: ao vivenciar esses padrões na relação transferencial, o paciente, com a ajuda do analista, pode começar a enxergá-los, a nomeá-los e a entender suas origens e funções em sua vida psíquica.

A análise não oferece fórmulas mágicas para o amor, nem promete o encontro do “par perfeito”. O que ela propõe é um mergulho profundo em si mesmo, uma investigação corajosa sobre a própria forma de amar, de desejar e de se relacionar. Trata-se de se dar conta das escolhas inconscientes que nos levam a repetir e do que, em nós, sustenta esses ciclos.

Reescrevendo a história: a coragem de amar diferente.

À medida que o sujeito avança em seu percurso analítico, que elabora suas questões e se apropria de sua história, algo novo pode surgir. A conscientização dos próprios mecanismos e a simbolização das experiências dolorosas abrem espaço para que se possa fazer diferente. Não se trata de apagar o passado, mas de dar a ele um novo significado e, a partir daí, construir um futuro com escolhas mais conscientes e menos aprisionadas à repetição.

Romper com padrões amorosos arraigados não é simples nem rápido. Exige entrega, trabalho psíquico e, acima de tudo, a entrega em se confrontar com as próprias verdades, muitas vezes dolorosas. Mas a recompensa pode ser a conquista de uma forma de amar mais livre, mais autêntica e mais satisfatória.

Talvez o convite da psicanálise seja este: em vez de apenas esperar que o amor nos encontre ou que o outro preencha nossos vazios, que tal nos propormos a entender como nós mesmos construímos (ou sabotamos) nossos laços? Entregar-se a um percurso analítico pode ser o primeiro passo para desatar esses nós e se permitir amar – e ser amado – de uma maneira que verdadeiramente ressoe com quem você é.

Afinal, se o amor é uma arte, a análise pode ser o ateliê onde aprendemos a manejar toda está complexidade com, no mínimo, mais liberdade.

Ilustração:

Os Amantes – Pierre-Auguste Renoir

Referências Sugeridas:

Freud, S. “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, “Sobre o Narcisismo: Uma Introdução”, “Além do Princípio do Prazer”).

Lacan, J. Seminário 8 e o Seminário 20.